Matéria por: Iago Yoshimi Seo
O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) deste ano foi “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Para o professor do Escola Estadual Prof. Manoel Ferraz, Carlos Alexandre, o tema pode tirar o aluno da zona de conforto, e instigá-lo a refletir mais.
“Nesse caso em específico, acho importante porque a maioria das coisas que remetem a nossa herança africana sofrem com certo estigma. Talvez pela tradição religiosa do Brasil, ou por conta de nossa formação europeia, parece que a África é sempre algo que deve ser superado, deixado de lado, e que não deve ser mostrado”, comentou o professor.
Carlos ainda comentou que existem grupos e comunidades que se dedicam a valorizar a herança africana no país. “Colocar o aluno a refletir sobre isso é maravilhoso, ele vai ter que argumentar de modo muito crítico”, disse.
Grupos e comunidades do Brasil
A herança africana cruza desde aspectos culturais e geográficos do Brasil de fato. Segundo o censo de 2022 do IBGE, o país possui 8.441 localidades quilombolas, sendo 24% delas no Maranhão. A região sudeste do Brasil abrange 1.245 localidades, o que corresponde a 14,75%.
Na cidade de Atibaia-SP, o tema não poderia chamar mais a atenção. Isso porque, o município abriga o primeiro núcleo cultural de um quilombo urbano da cidade. O Negra Visão, como é chamado, começou como um coletivo em 2018, e dois anos depois passou a ser uma associação cultural oficial que abriga um memorial da escravatura da cidade.
O local guarda diversos equipamentos e preserva documentos do fim do século 19. Para a coordenadora da associação, Denize Moreira, o tema da redação foi ótimo e atual. “Mais do que um ponto de encontro do povo preto, o Negra Visão é um ponto de encontro da cultura preta. Sabemos que essa cidade foi uma das últimas cidades a reconhecer a libertação dos escravos, e toda essa história estava guardada”, disse a coordenadora.
Um dos itens preservados no memorial é um “Atestado de Matrícula” para escravos, seguindo o decreto Nº 4.835 de 1871, sancionada por Dom Pedro II, que instaurava a obrigatoriedade de “registro de posse” do escravo ao proprietário.
A preservação material dos dados
Cada comunidade quilombola no Brasil possui seus cernes de discussão para valorização cultural da herança africana. Ela pode vagar desde o incentivo aos estudos de área nas escolas e universidades, até discussões de intolerância religiosa, como comentado pelo professor Carlos. Fato é que uma das heranças deixadas pela cultura africana no Brasil foi o desconhecimento sobre ela, corroída pelo desgaste do tempo.
Nada supera o tempo nesse sentido. Preservar os dados materiais e incentivar trabalhos, tais como os do Negra Visão, que assumiu o manto de responsabilidade para isso, supera esses desafios. A manutenção de equipamentos e preservação documental que temos de um período histórico, é um início para a sustentação de outros pilares do tema.
Somado à fácil acessibilidade à informação, mas também à desinformação, o brasileiro se vê agora diante de um mar de possibilidades sobre uma narrativa, que só será comprovado quando posto aos ferros do fato. O fato precisa ser embasado em dados e materiais preservados por comunidades e iniciativas culturais, tais como feitos pelo Negra Visão.
“Quero que as pessoas venham, conheçam as peças da época da escravização, vejam os instrumentos trazidos pelo povo preto. Esses instrumentos criaram essa cidade, através do seu trabalho”, finalizou Denize, comentando sobre o Negra Visão.